F. Nietzsche
O meu avô era alto e magro. Era uma pessoa carismática, talvez produto ou resultado da vida que decidiu levar. Ou talvez não... Há pessoas assim, parece que trazem carisma no ADN. Foi pastor a maior parte do seu tempo útil de vida, mas não creio que o isolamento que a profissão exigia – semanas, provavelmente meses, a fio sozinho por altas paragens da Estrela – fosse para ele uma inquietação. Antes pelo contrário. Ser pastor não era uma profissão. Era um prolongamento da expressão dele mesmo. Fumava tabaco de enrolar. Fumou até muito tarde. Foi, até morrer, uma pessoa do contra (abençoado) e, diria até, um pouco anti-social. Na verdade, era uma pessoa difícil. Mas nunca faltou nas atenções e afectos de avô e essa contradição deliciava-me. Sentia-me privilegiada e, por ser a neta mais nova, ele chamava-me «minha jóia». Contava sempre as mesmas lengalengas, daquelas que rimam e têm piada, das quais hoje só me lembro de frases soltas. Descreveu-me vezes sem conta, procurando nos meus olhos a partilha dessa memória, os passeios que deu a pé comigo quando foi operado e teve de ficar em Lisboa. Eu era muito pequena e por isso não me lembrava mas lembro-me de ter pena de não lhe poder dizer que sim. Uma vez tentou catequizar-me e ensinou-me o Sinal da Cruz, «Pelo sinal da Santa Cruz, livre-nos Deus Nosso Senhor dos nossos inimigos». Foi num final de um dia
de verão, os dois sentados sobre uma manta velha, na tapada, debaixo de uma macieira de brado esmolfe. Catequese com cheiro adocicado. Nem ele nem eu demos sequência à coisa – no fundo partilhávamos ambos de algum desinteresse pela religião, mas nunca o assumimos explicitamente, ele provavelmente porque achou que era o seu papel ensinar-me essas coisas e eu porque não o queria desmentir na importância do Divino. Consumou-se simplesmente como se de um pacto silencioso se tratasse.
Nunca argumentou ou justificou-se no que quer que fosse. Era assim e pronto. Ninguém lhe mudava as ideias. Dizia, por exemplo, que nem eu nem a minha irmã éramos lisboetas porque, apesar de termos nascido na cidade, o que contava era a terra de baptismo e essa, ah essa sim, era a terra dele. Avaliava-nos, divertido, o grau de saúde pelos ossos das costas que, naturalmente, se sentem e por isso diagnosticava com alguma preocupação irónica que estávamos magras (quanto mais gordas, mais saudáveis...). No regresso ou na partida, lá estava ele sempre no mesmo sítio, sentado no miradouro em frente à sua casa. E do alto, acenava-nos. Morreu há sete anos já na casa dos noventa.
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