
Havia, na terra do meu pai, Serra da Estrela, um costume no Entrudo bastante sarcástico. Consistia em, a altas horas da noite, sob o mais completo anonimato reunirem-se dois grupos de homens, cada um deles posicionado num dos dois pontos mais altos da aldeia (Castelo e Outeiro). Com a voz distorcida, tornando-a grave e macambúzia com o auxílio de uma cabaça, projectavam sobre o povoado da aldeia alguns dos mexericos mais melindrosos dos seus habitantes. À vez, cada um dos grupos soltava os boatos que divulgava em tom de gozo… o que nem sempre corria bem. Por vezes ocorriam agressões físicas graves, ficando na memória a ocasião ocorrida nos anos 40 da qual resultou a morte de um dos homens que tinha estado a maldizer no cimo do Castelo. Tinha este costume uma espécie de função crítica, onde as sanções sociais geralmente comentadas em surdina, eram assim elevadas em voz alta. Sobre os telhados fumegantes da aldeia imersa no frio da estação, caíam as censuras e acusações mais atrozes, fossem elas assentes sobre factos verídicos ou não.
No Alto Alentejo, havia numa aldeia um costume funcionalmente idêntico: por altura do São Martinho, nas noites que vão da véspera ao terceiro dia, escrevia-se qualquer piada ou graça nas paredes da rua da pessoa ou pessoas a atingir. O problema era que, geralmente, os escritos se revelavam tão grosseiros que eram entendidos como “uma ofensa a moral pública”, como descreveu um jornal estremocense num artigo da época (anos 50).
Não obstante o segundo exemplo não se tratar do Entrudo, ambas as situações reflectem o espírito com que o Entrudo se praticou ao longo dos tempos em Portugal: o controlo social, a censura e, simultaneamente, a catarse permitida única e exclusivamente nessa quadra. Publicitar os “podres” era a maneira de os deixar partir, de os exortar, retirando-os da reprodução sussurrada entre as portas e travessas da aldeia. Mortes e agressões à parte, claro está, no fundo, essa forma de purificação encontrada pela comunidade era, simultaneamente, uma celebração de si mesma, da sua autoridade social sobre os indivíduos que a compunham, dos seus limites e, também, da perenidade dos valores que lhe serviam de orientação. Não interessa aqui que valores eram esses, se eram melhores ou piores que aqueles que temos hoje. Interessa tão-somente sublinhar como eram as estações festivas feitas de dentro para fora, plenas de significado para os seus agentes. Não se pretende fazer uma elegia ao passado e, muito menos, à sua revitalização oca sem consistência alguma no contexto actual… questiono apenas: que raio é hoje o Entrudo? Samba? No Fevereiro português???
(foto original site oikos; manip. B.)
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